terça-feira, 19 de novembro de 2024

A arte em movimento.

 

Grafiteiras se unem, criam produtora e abrem portas a 7 artistas mulheres na periferia de SP

"Seiva Cultural" nasceu como um ato de resistência aos "atravessadores" da arte de rua; Mimura Rodriguez e Amanda Pankill sonham em transformar a realidade do meio


Mimura (à esquerda) e Pankill (à direita) representam o empoderamento feminino no mundo da arte urbana (Crédito: Miguel Salvatore e Clara Dias)

Até o final do ano, regiões periféricas da cidade de São Paulo ganharão novos coloridos. As artistas Mimura Rodriguez e Amanda Pankill apoiarão a arte de sete grafiteiras que tiveram suas obras selecionadas pelo programa Museu de Arte de Rua (MAR), da Prefeitura de São Paulo, para estampar grandes muros com grafites que exalam cultura.


O apoio só será possível graças a um ato de resistência de ambas contra o que chamam de "atravessadores" deste meio - uma referência a Carol Itzá, artista e pesquisadora que usa o termo. Visando a independência dos artistas de rua, Mimura e Pankill decidiram pôr a mão na massa e criar uma produtora própria, a fim de permitir que os grafiteiros "tomem para si o espaço e essa fatia do mercado que é deles por direito".


"A ideia surgiu de uma necessidade urgente que sentimos de sermos autônomas às produtoras que atuam no meio da arte urbana. Achamos que falta transparência, valores justos e priorizar os artistas", comenta Pankill. "É importante que o dinheiro gire entre nós e não caia na mão de quem só enxerga nosso meio como mais um mercado a ser sugado. Prezamos pelo crescimento, profissionalização e aprimoramento da nossa classe".


Com anos de experiência e centenas de obras no portfólio, ambas contam que já tiveram experiências "bem negativas" com produtoras atuantes no cenário. "Percebemos que muitas empresas se aproveitam do fato da maioria dos artistas serem leigos nos processos de produção executiva e de campo e acabam levando vantagem", fala Pankill.  


Depois de se conhecerem pintando um grafite com amigos em comum, elas perceberam que tinham a mesma angústia. Entre um grafite e outro e uma primeira produção própria, entenderam que a solução seria os próprios artistas se aprimorarem para cumprir este trabalho com seus pares, priorizando remuneração justa ao grafiteiro, uma produção que reduz custos e é transparente à classe. E assim, nasceu a "Seiva Cultural".


Como uma analogia à seiva que alimenta as plantas, levando todas as substâncias importantes para a vida delas, as artistas escolheram este nome para o projeto por serem, antes de produtoras, também artistas, exatamente iguais àqueles que vão produzir.  


"Fazemos parte de um mesmo organismo, somos parte integrante do mesmo 'corpo' onde vamos atuar, que é o meio cultural que queremos nutrir e fazer com que ele fique cada vez mais rico", explica Mimura sobre a missão e visão da produtora. "É retroalimentar a nossa própria 'máquina', impulsionando nosso crescimento e dos nossos iguais", completa.


As artistas têm a expectativa de que a produtora cubra para outros grafiteiros uma ausência que ambas sentiram quando começaram e avançaram no mundo da arte urbana.


"Muita gente ganhou e ainda ganha muito dinheiro por conta da falta de expertise dos artistas em administrar os próprios trabalhos. Falta um olhar de artista, alguém que enxergue o artista como um trabalhador, mas também como quem desempenha o que de mais valioso vai resultar de qualquer trabalho: a arte", pondera a grafiteira Pankill.  


Empoderando artistas mulheres

Mimura e Pankill têm a "mulher" como o cerne da temática de suas obras (Crédito: Don Salvatore)

Apesar de não se restringir a artistas mulheres, a "Seiva Cultural" dará mais enfoque a elas, já que, naturalmente, Mimura e Pankill têm mais contato, acesso e abertura com o público feminino. "Mas vamos produzir artistas homens também, caso eles confiem no nosso trabalho enquanto profissionais mulheres, o que às vezes é o mais difícil de acontecer [risos]", brinca em referência ao machismo que também existe no meio.


Outro foco inicial será de editais culturais públicos e privados voltados para as artes visuais, além da produção de artistas convidados a executar obras, que não tenham experiência ou tempo para a produção. "O resto será consequência de um trabalho feito com integridade e respeito com as pessoas que nos confiaram seus projetos", diz Mimura.


Os trabalhos da "Seiva Cultural" começam com a produção de oito grafites em São Paulo, sendo sete de outras artistas e um da Pankill. Quatro grafiteiras - Brunaif, Eneri, Carolina Murayama e Yez Yas - são também da capital paulista, outra - Cássia Lírio - é do Rio de Janeiro e as duas últimas - Mina Ribeirinha e a indígena Isa Muriá - são do estado do Pará e vieram a São Paulo especialmente para esta oportunidade.


Entre os dias 18 e 25 de outubro, a produtora deu início à projeção de três grafites nas empenas do Conjunto Habitacional Campo Limpo C, na Rua Luiz Antônio Verney, 311, no Jardim São Luiz II, zona sul de São Paulo. Na primeira quinzena de novembro, começam outros quatro nesse mesmo local, devendo terminar em um prazo de duas semanas.  


Ainda neste mês, com data a confirmar, será realizada a produção do último painel, nos muros da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Thereza Maciel de Paula, na Rua Jorge Carlos de Almeida, 659, em São Matheus, extremo da zona leste da capital.


A maioria das obras homenageia as mulheres e provoca reflexões sobre a força e o papel delas na sociedade, colocando-as como protagonistas em diferentes contextos.


Segundo narram, as produções provocam em Mimura e Pankill uma sensação de apropriação de um espaço e direito que já é delas e dos artistas urbanos. "É uma sensação boa, de estar fazendo algo justo e que contribui para nosso meio, a intenção é essa", afirma Pankill. Com a "Seiva Cultural", ambas estão 100% dedicadas ao projeto e à arte.


Além de resistirem contra os "atravessadores", as artistas ainda lutam para fazer a arte urbana ser reconhecida como uma vertente da contemporânea e não como uma arte menos séria que as demais modalidades visuais, o que implica em cachês mais baixos, menos oportunidades em espaços tradicionais e menos políticas públicas específicas.


Apesar disso, já enxergam uma melhora no cenário. No dia 15 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que reconhece o grafite, a charge, a caricatura e o cartum como manifestações da cultura brasileira, protegendo-os da repressão.


As obras


As sete primeiras obras detalhadas a seguir serão os grafites nos muros do conjunto habitacional na zona sul. A oitava (Animais Imaginários) será a pintura na Emef, zona leste.


"Águas de Encantaria", de Isa Muriá. Homenagem às histórias das "mulheres-peixe", que se entrelaçam em diversos contos amazônicos, de diferentes comunidades, aldeias e povos, contos que transcendem a figura "folclorizada" mais conhecida da sereia. A arte se revela um instrumento de preservação e resgate dessas narrativas. Conheça a artista.


“Ananse sabedoria, esperteza e criatividade”, de Mina Ribeirinha. Homenagem à professora Zélia Amador, que atuou no processo de formação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), nos anos 70. Traz identidade de território, resistência negra e afro-índigena na Amazônia e cores de religiões ancestrais. Conheça a artista.


"Aqui se faz Poesia", de Cássia Lírio. A imagem em ideia de bordado ponto-cruz é inspirada pelo sentido primordial e mitológico da tecelagem como o fio da vida. Não à toa, a figura central é uma mulher, comumente designada a esse ofício criativo e sagrado. Lembra que desde o mais simples gesto, contém conhecimento e sabedoria. Conheça a artista.


"Comigo ninguém pode", de Carolina Murayama. A presença da mulher é retratada como uma figura de poder e beleza, desafiando normas sociais e reivindicando seu espaço na sociedade. Ela está segurando a planta "Comigo Ninguém Pode" como um símbolo de proteção e segurança. Sua imagem inspira e convida à reflexão. Conheça a artista.


“Doce Força”, de Eneri. Destaca a potência do feminino, reconhecendo que as características “doce” ou “feminina” não diminuem a força intrínseca das mulheres e das pessoas em geral. A rosa retratada simboliza a delicadeza, mas também os espinhos que a acompanham, refletindo a complexidade da feminilidade. Conheça a artista.


"Despertar", de Yez Yas. Além de representar a luta das mulheres por igualdade e reconhecimento, a obra também é um apelo à valorização do trabalho feminino na agricultura e na sociedade como um todo. A figura da camponesa personifica a força e a resiliência das mulheres que trabalham na agricultura. Conheça a artista.

"Enlaço: tramas do ser", de Pankill. É uma jornada visual que desvenda os laços sutis e resistentes entre mulheres, imbuídos de ancestralidade. Composto por dois desenhos, propõe ao espectador um olhar sobre a complexa teia de relações entre mulheres, trazendo significados simbólicos e literais. Reflexão sobre os vínculos ancestrais. Conheça a artista.


“Animais Imaginários", de Brunaif. Referência a Francisco Domingos da Silva, nascido no Acre, cujas obras são marcadas por cores vibrantes, fluidez e evocação poética, características típicas do movimento Naïf. Este movimento é conhecido por suas criações artísticas autodidatas, desvinculadas de formação acadêmica. Conheça a artista.


Quem é Mimura Rodriguez


Mestiça - filha de mãe japonesa e pai uruguaio -, Mimura é periférica, nascida no Jabaquara, zona sul de São Paulo. Aos 35 anos, mora em Guarulhos, Região Metropolitana. Além de ter a força das mulheres de sua família como inspiração, ela também enfatiza que o ambiente em que cresceu é sua raiz e seu norte em tudo o que faz na arte.  


Mimura é graduada em cenografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Migrou do teatro para outras frentes das artes em 2017, quando começou a tatuar. Durante a pandemia, retomou trabalhos de xilogravura e tapeçaria. Em 2022, foi convidada a produzir murais com uma temática especial para o Dia das Mães e logo se apaixonou por pintar em escala cada vez maior e levar sua percepção de mundo para a rua.


"De mãos paradas minha cabeça fica cheia, preciso estar constantemente movimentando e mudando o que vejo, sinto e percebo do mundo de lugar. Seja com tinta, tecido, linhas. O importante é estar em movimento", afirma a grafiteira que compõe o rol de artistas latinos da agência "Cor Preta", que possui uma galeria online hospedada em Berlim.


Mimura já realizou cerca de 50 pinturas na carreira. Como grafiteira, tem admiração pelos artistas de rua que abriram caminho para que a arte urbana passasse a ser considerada uma profissão real. Além do prazer de pintar, a rua trouxe à artista a vontade de "criar grande pra geral ver", além  da "satisfação imensa" em saber que é algo público.


Temas relacionados à ancestralidade, vivenciada através da maternidade e de sua espiritualidade, compõem a poética de Mimura, que, além de São Paulo, também realizou pinturas em muros no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Jacareí, Guarulhos e Cubatão, e tem trabalhos de xilogravura e tapeçaria expostos em São Paulo e em Berlim, na Alemanha.


Entre suas obras, destacam-se ilustrações para a coleção de sandálias Ipanema (2021); grafite "Enraizadas" em um prédio do CDHU na zona leste da capital paulista (2023); pintura "Comunidade" em um mural de 450m² no CEU Butantã (2022); grafites no Minhocão e murais em diversas regiões de São Paulo, como na Baixada do Glicério e na Vila Ré.


Mimura também foi assistente de pintura em trabalhos para marcas como Adidas e Ballentines (2021), já participou de exposições, foi palestrante e, junto ao SESC de Osasco, realizou oficinas de xilogravura e lambe-lambe, entre outros projetos no mundo das artes.


Confira aqui o portfólio da artista.


Quem é Amanda Pankill


Nascida na Penha, zona leste de São Paulo, Pankill é uma mulher parda, de 41 anos, que vem de famílias oriundas do nordeste brasileiro, com ascendência indígena.


"Sou uma mulher que não tem medo ou pretensão de esconder todos os lados que as pessoas não querem ver ou aceitar em uma mulher: sua fúria, ira, assertividade, humor e autonomia", ressalta a artista. "Inclusive, isso também é o grande cerne que move meu trabalho, quero trazer as faces da mulher que são socialmente compelidas. Desconstruir essa ideia de feminilidade ligada à submissão, resiliência e compassividade", acrescenta.


Foi aluna da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), como bolsista vinda do Projeto Aprendiz em Pinheiro, de uma ONG de artes de São Paulo, celeiro de muitos artistas urbanos. Graduou-se em Design Gráfico, com pós-graduação em História da Arte.


Pankill inseriu-se no universo da arte urbana ainda no ano de 2002. Um dos principais eixos de seu trabalho é a imagem da mulher e o antagonismo entre sua fúria e resignação. Já atuou como educadora em diversos projetos sociais em São Paulo.


A relação com a arte vem desde a infância. Ainda criança, quando seu tio a levava para ajudar a pintar a rua na Copa do Mundo, tradição nas periferias do Brasil, começou a associar arte e rua. "Participar dessas práticas me instigou a querer usar a rua como suporte para meus desenhos. Também estudei em escola pública e minha escola tinha muitos grafites, já na década de 90, então me interessava muito pelos desenhos", lembra.


Pankill afirma ter uma relação "conflituosa" com a arte, já que às vezes resiste em se reconhecer como artista. Por outro lado, diz que este ofício faz observar-se todos os dias, pensar sobre quem é, o que busca, qual o seu propósito e o legado que quer deixar.


Feminista convicta, assim como Minura, tem a "mulher" no cerne da temática de suas obras. Como designer de formação, gosta das formas simples em sua arte e de uma estética mais simples e "limpa", que comunique o máximo com o mínimo de elementos. "Acho que a simplicidade é o último grau de sofisticação, concordando com Da Vinci, e também mais difícil de se alcançar com maestria", pontua a artista urbana.  


Para Pankill, a vida do artista urbano, apesar de instável, é ao mesmo tempo boa, já que oferece uma liberdade que a maioria das pessoas não têm nos modelos de trabalho da sociedade atual. "Eu me sinto privilegiada, apesar dos pesares. Você precisa aprender a viver e se organizar dentro dessa instabilidade, principalmente no quesito finanças, mas para mim isso não é problema, eu aprendi e me saio bem", comenta a grafiteira.


A artista já participou de exposições em Los Angeles, Washington e Paris e pintou muros em diversas outras cidades como Rio de Janeiro, Brasília e Santiago.


No Brasil, esteve em importantes eventos do cenário da arte de rua, como “Donas da Rua da Arte", da Maurício de Sousa Produções e ONU Mulheres, “IV Bienal Internacional de Graffiti Fine Art-GFA”, “Projeto 4km - Copa de 2014”, “MAAU - Museu Aberto de Arte Urbana”, “Meeting Of Styles Brasil”, além de diversos outros. Já realizou trabalhos para Nike, FORUM, The Body Shop, Arezzo, Dafiti, The Town, entre outros inúmeros clientes.


Confira aqui o portfólio da artista.


Imprensa


Para entrevistas, fotos e informações sobre a produtora "Seiva Cultural", contate a assessora Mainary Nascimento: (11) 96921-5666 / mainary.assessora@gmail.com.  


Imagens das projeções de como ficarão os grafites disponíveis neste link.


“Este projeto foi realizado com recursos financeiros do Projeto MAR – Museu de Arte de Rua - Edital nº 08/2024/SMC/CPROG - Secretaria Municipal de Cultura - SP”

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