Brasilia, /2020 — “No Brasil, hoje, há uma luta que é maior e mais abrangente. Isso requer o envolvimento de todos que acreditam na democracia e na justiça social. Trata-se do Fora Bolsonaro, por tudo de nefasto que sua gestão representa. O presidente da República se mostrou inimigo do povo brasileiro”.
A análise é de Maria Fernanda Ramos Coelho, gestora pública que presidiu a Caixa Econômica Federal entre 2006 e 2011. Foi a primeira e única mulher a ocupar o cargo, desde a criação do banco, em 1861. Com essa prerrogativa, conduziu o programa Minha Casa Minha Vida, que financiou mais de um milhão de moradias em praticamente um ano (de 2009 a 2010), e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — marcas dos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Maria Fernanda também foi superintendente nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, área responsável pelas estratégias e desenvolvimento empresarial do banco. A ex-presidente da Caixa, empregada concursada desde 1984, atualmente aposentada, denuncia as intenções do governo Bolsonaro de retirar recursos do banco e de tentar abrir seu capital, com o propósito de vendê-lo em seguida. “A Caixa é fundamental para financiar crédito e políticas sociais”, declara.
Para que o país não abdique do futuro, Maria Fernanda defende a manutenção da Caixa 100% pública, “patrimônio dos brasileiros que não pode ser destruído”. Segundo ela, como o Brasil é muito desigual, o desafio é buscar, ainda por muitos anos, a democratização do acesso ao crédito, bens e serviços.
Formada em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco, a bancária é especializada em Finanças Empresariais e Gestão Pública, pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec). Possui também formação em Administração, Métodos e Técnicas pela Universidade de Pernambuco (UPE), além de Excelência Humana pela Universidade Holística Internacional da Paz (Unipaz).
Confira a entrevista de Maria Fernanda Coelho à Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae):
Que avaliação você faz sobre a atual crise e como essa situação impacta na economia, na política e no setor sanitário do país?
Maria Fernanda — Vivemos uma crise muito grave, na medida em que essa situação abarca vários aspectos: o político, o social, o ambiental e o de saúde. Do lado institucional, um governo federal no qual a única preocupação do presidente é agredir as instituições, intimidar a imprensa, militarizar o governo. Já são quase três mil militares ocupando cargos nos ministérios. Trata-se de um total descaso para com a saúde das pessoas, o que debocha da dor de quem perde seus familiares e amigos.
A Covid-19 escancarou toda a irresponsabilidade do governo federal, traduzida na troca de dois ministros da Saúde em menos de três meses. Hoje, para se ter uma ideia da gravidade dessa postura governamental, já passamos de 45 mil mortos e são centenas de milhares de infectados. Os indicadores apontam que são mais de 10 milhões de trabalhadores que já tiveram o contrato de trabalho suspenso ou reduzido, somados a um milhão de pedidos de seguro-desemprego. Com base na expectativa de queda do Produto Interno Bruto (PIB) em torno de 7%, as projeções dos analistas é de que o Brasil, ante a ausência de políticas públicas, será um dos países com maior dificuldade de recuperação pós-pandemia.
Do lado ambiental, o desmatamento segue sem qualquer controle. Isso poderá fazer com que ocorra, no período de estiagem, uma condição de termos queimadas ainda piores das que tivemos em 2019 e que chocou a todos nós e ao mundo.
O governo sinaliza com a retomada de planos de privatização. O que significaria para a sociedade brasileira o desmonte da Caixa Econômica Federal?
Maria Fernanda — A privatização significa abdicar do futuro. Está mais do que claro para a sociedade brasileira a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) na pandemia e da Caixa Econômica Federal, um banco público e com caráter social. O auxílio emergencial é um exemplo disso. Uma ação dessa magnitude não aconteceria em um banco privado. Tanto que, até hoje, nenhum deles teve qualquer ação substantiva na pandemia. Sequer ofertar crédito para as pequenas e médias empresas a bancada financeira privada está fazendo.
Portanto, é uma afronta ao povo brasileiro o governo continuar a falar na privatização das empresas públicas, em especial os bancos públicos, como fez Paulo Guedes [ministro da Economia] na reunião do dia 22 de abril com o presidente da República, que se tornou pública.
De que maneira a crise da pandemia se relaciona com o legado do programa Minha Casa Minha Vida?
Maria Fernanda — O programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) foi criado em 2009 com a meta de contratar um milhão de moradias, cumprida em dezembro de 2010. Essa iniciativa teve o objetivo de responder, em um primeiro momento, a uma demanda do povo brasileiro de acesso a uma moradia digna. O MCMV também chegou a ser utilizado como ferramenta anticíclica diante da crise econômica internacional de 2008.
O programa atendeu mais de quatro milhões de famílias e gerou 1,7 milhão de empregos em quatro anos. Porém, com o golpe em 2016, foi iniciado o desmonte e, no governo Bolsonaro, o ministro Paulo Guedes e Pedro Guimarães [presidente da Caixa] o esvaziaram completamente, sob o argumento mentiroso de que iriam revê-lo. Mas o que ocorreu é que, na prática, o enterraram. É só olhar a planilha dos números de contratação e volume de recursos.
Como os bancos públicos podem colaborar com esse momento de dificuldades?
Maria Fernanda — Temos três bancos públicos que poderiam dar uma contribuição expressiva. São o BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, além dos bancos regionais. Na crise de 2008, enquanto houve forte contração dos empréstimos dos bancos privados, encolhendo a oferta em torno de nove pontos percentuais, os bancos públicos expandiram em 12 pontos percentuais a concessão de crédito.
Não tenho nenhuma dúvida: sem o Estado direcionando corretamente os investimentos, promovendo políticas públicas, e sem os bancos públicos com a oferta de crédito, não há como superarmos a crise econômica que se depara no país, por conta da pandemia. Eis um detalhe importante: no primeiro trimestre de 2020, tivemos queda de 1,5% do PIB. Portanto, a crise sanitária vem agravar o quadro que já vivíamos. Para este ano, as projeções apontam para uma queda de 7% do PIB nacional.
Como o movimento dos trabalhadores deve agir para apresentar alternativas estruturais à atual conjuntura do país?
Maria Fernanda – Há uma luta que é maior e mais abrangente e, por isso, requer o envolvimento de todos que acreditam na democracia e na justiça social. Trata-se do Fora Bolsonaro, por tudo de nefasto que sua gestão representa. O presidente da República se mostrou inimigo do povo brasileiro.
Pensamos que é papel dos movimentos dos trabalhadores compor essa frente de luta, assim como contra o racismo estrutural, que mata diariamente jovens negros nas periferias. É preciso ainda lutar contra a retirada de direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo que há a necessidade da busca de interlocução com os que estão na informalidade para se construir alternativas que contemplem todos os trabalhadores.
A solidariedade é um movimento muito importante, neste momento de crise tão grave. Esse registro precisa ser feito sempre, devendo ainda contar com a firme disposição da classe trabalhadora. Temos visto inúmeros grupos mobilizando-se para apoiar quem mais precisa, seja com a doação de alimentos saudáveis, seja no preparo de refeições para as pessoas em situação de rua ou, ainda, criando brigadas de saúde e fornecendo máscaras de proteção e cestas básicas.
A estimativa é de que, neste ano, o país alcance o patamar de 20 milhões de desempregados. Esses laços de solidariedade são fundamentais para que tenhamos sempre a esperança e a perspectiva de superação desse momento tão doloroso.
Em relação ao futuro, quais são as perspectivas para o setor público no Brasil?
Maria Fernanda – O que diferencia um país civilizado é sua condição de atender toda população, por meio de um sistema público de saúde, educação e acesso à cultura e ao crédito. O Brasil, mais do que nunca, precisa do setor público para reduzir as desigualdades e buscar justiça social.
A perspectiva é de muita luta, de aposta no diálogo e da presença cada vez maior dos sindicatos e associações nas lutas da sociedade brasileira, no sentido de demonstrar a importância do setor público.
O SUS, que estava com os dias contados, mostrou nesse período de pandemia como é imprescindível. Mesmo a classe média, que possui planos de saúde privados, hoje percebe sua importância. Sabe, por exemplo, que a produção de vacinas, o controle de doenças transmissíveis, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), os bancos de sangue – tudo isso é parte do Sistema Único de Saúde.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 20% dos que têm mais de 10 anos de idade não possuem celular e 25% das casas no Brasil não tem internet. São os Correios que estão sendo chamados a contribuir para que esse público possa ter acesso ao auxílio emergencial. A atuação proativa do setor estatal é fundamental para o povo brasileiro.
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