Praça da Liberdade, 238 - Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados.
M. R. Terci
Oh, meu nobre! Sinto pela sua roupa, não foi minha intenção atingir tão alva vestimenta com tão pobre bola de retalhos. Brincávamos na praça, quando teu passo hesitante atravessou o caminho da bola. Com sua permissão, posso pegá-la? Não me machuque. Compreenda. Nossas famílias são humildes e o final da tarde é todo o tempo que nos resta para brincarmos juntos, eu e meus amigos, aqui no bairro, com nossa modesta bola. O nobre não pertence a este lugar, pois não? Percebi que olhava distraído para as velas acesas diante da capela. Talvez não saiba de sua curiosa origem. Dizem que convém avisar quem por aqui se perdeu. Então, talvez esteja disposto a trocar a custódia de nossa bolota de panos por uma história.
Ouça. Contar-lhe-ei sobre a Capela dos Enforcados e sobre o cabo Francisco José das Chagas, o Chaguinhas. O cabo Francisco foi lançado no mesmo local e com a mesma corda que um de seus companheiros revoltosos, o soldado paulistano Contindiba, já havia sido executado.
A corda em torno de seu pescoço se rompeu.
“Liberdade! ” – Gritou o povo a uma só voz.
Em todo o Largo, ocupada por mais de dez mil pessoas, ressoaram vivas ao cabo e protestos contra Portugal que se repetiram por todas as ruas e vielas circunvizinhas à forca.
Então vede, nobre senhor? O quanto a cidade provinciana ama esse Chaguinhas, quão vívida é a memória do menino querido, do guri pobre, sem ofício, sempre às ordens para pequenos labores, nascido na Rua das Flores, próximo à Igreja do Carmo, correndo pelas vielas enlameadas da provinciana e colonial São Paulo, jogando seus jogos nas ruazinhas estreitas da ensimesmada vila, nadando no preguiçoso Ribeirão do Anhangabaú, brincando com os amigos nos penumbrosos bosques, até que cresce e parte para Santos e seu consequente engajamento militar. Sonhava lutar em nome da justiça e voltar com histórias para sua amada São Paulo. Mirava no futuro, urgia cavalgar em sua direção, libertar o solo pátrio desses covardes e vis, valente e bravo soldado que para a refrega partiu. Foi-se, lutou em nome de tudo que é justo, inclusive, os direitos de seu quartel, voltou desdouro, com pena capital imposta por reivindicar o pagamento dos salários atrasados de 5 anos e equiparação de condições entre a caserna brasileira e a portuguesa.
Os soldados portugueses providenciaram nova amarradura e após rígida averiguação içaram o condenado. E essa segunda corda também arrebentou.
“Milagre! Milagre! ” – Sussurravam entre si enquanto se benziam e apontavam para o cadafalso. Veja meu nobre, não apenas era o costume daquele tempo perdoar o condenado ou comutar-lhe a pena em casos semelhantes, como parecia ser a vontade de Deus. Como diz o bom padre, infinitamente mais justa e poderosa que o alvitre dos homens.
Mas algum chavelhudo, entre demônios portugueses, trouxera consigo uma terceira corda que, para dignificar a península, em honra à El Rei de Portugal e do Brasil, de aquém e além-mar, não haveria de ser desperdiçada. E o valente Chaguinhas, mesmo após ter sido suspenso por vários minutos, ainda vivia e em meio ao murmurinho da multidão, o cabo já era divinizado pela persistência com que desafiava a morte. Dizem que o amor pela sua terra o mantinha.
Mas para horror e desespero de todos os presentes, o cabo foi morto pelos portugueses a pauladas. Esperava-se que o castigo exemplar infundisse temor à população e evitasse futuras manifestações radicais. O povo voltou para seus lares. Esse sentimento de injustiça e impotência, essa tristeza e sofrimento leva tempo para ser digerido e consumado. Tudo isso a menos de um ano da declaração da independência.
Não por acaso erigiu-se dignificante cruz no local de sua execução, ao pé da qual acendiam-se velas conforme o costume da época. Hoje chamamos esse sítio de Largo da Liberdade e, ano passado, em memória do cabo Chaguinhas, do soldado Contindiba e dos outros cinco soldados enforcados nas vergas de um navio, ergueu-se essa bela capela para o qual o senhor olha tão atentamente. Vede? Muito antes do tempo de meu pai, havia marco de cemitério atrás daquelas árvores, nas proximidades da Rua da Glória, que se prestava a receber os frutos do cadafalso. Não somente revoltosos do período, mas escravos fujões e também os delinquentes ainda estão ali. Pobres deserdados da justiça! Arrastados à praça para morrer morte inglória e mesquinha, inumados em campa incerta, sem estremadura, para que até os fantasmas se esquecessem de seus nomes e de onde vieram.
Por vezes, vê-se esses espíritos confusos perambulando pela praça, uns parados bem aí onde o senhor está, sempre atraídos pelas velas acesas. É nessas ocasiões que contamos a história para vos assegurar de que o povo não se esqueceu.
Sobre o autor: M. R. Terci é escritor, roteirista e poeta. Antes de se dedicar exclusivamente a escrita, foi advogado com especialização em Direito Militar e mestrado em Direito Internacional, Ciência Política, Economia e Relações Internacionais. Autor de Imperiais de Gran Abuelo, publicada pela Pandorga, e o criador da série O Bairro da Cripta, lançada anteriormente pela LP-Books, obras que reforçaram seu nome como um dos principais autores brasileiros de horror da atualidade. Com base em fatos históricos, Terci substitui os castelos medievais pelos casarões coloniais, as aldeias de camponeses pelas cidadezinhas do interior, os condes pelos coronéis e as superstições por elementos de nosso folclore e crendices populares, numa verdadeira transposição do gótico para a realidade brasileira. Seus livros não são apenas para os fãs do gênero horror. Seu penejar é para quem aprecia uma narrativa envolvente, centrada na experiência subjetiva dos personagens mediante as possibilidades que o contexto sobrenatural de suas estórias permite.
Nenhum comentário:
Postar um comentário